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Gosto de mar

  • Foto do escritor: Judith
    Judith
  • 6 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 29 de mar. de 2024

Meu nome é Mina e gosto do mar.


Meu nome é Mina e cresci a ir ver o mar todos os dias. Levantava-me da cama num pulo, sacudindo o sono do corpo como se fosse pó e ia ver o mar.


Minha Má Dona dizia que não devemos ficar na cama a pensar se nos levantamos ou não, porque era como se ficássemos a ponderar se queremos viver. Dizia que, mal se acorda, deve-se sair da cama da mesma forma como se quer viver o dia. Estava-se logo a ver qual era a sua filosofia de vida: que se podia dizer muito de uma pessoa pela forma como ela se levantava da cama. Pessoas preguiçosas com o trabalho e indecisas, acordavam e ficavam lá, a pensar no que deviam fazer ao longo do dia e que, quase de certeza, não iriam dar conta. Gente influída, com viço no corpo, não se levantava, pulava da cama como se tivesse pulga no rabo. Gente sábia acordava, agradecia por mais um dia de vida e, saía da cama, nem devagar, nem depressa mas sim, sabiamente, se é que pode dizer.

Eu, colocava-me orgulhosamente na segunda categoria, com vontade de viver e fazer coisas, fossem elas quais fossem. O que quer dizer que tudo na minha vida era para ser rápido, fluído e com pouca ponderação. Não obstante, eu tinha o meu momento sábio do dia que era quando ia ver o mar.

Vivia numa pequena vila ao pé do mar, onde quase toda a gente dependia dele para sobreviver. O mar era pai, era mãe, era castigo, era benção e, de tempos em tempos, também morte e dor.

Enfim, como contava, todos os dias saltava da cama, corria pelas três ruas que constituíam a nossa grandiosa vila, gritando um bom-dia tragado pelo vento às pessoas que pelo caminho quase atropelava e dirigia-me para o pequeno pontão de madeira onde todos se reuniam pela manhã para ordenarem a sua vida.

Uma vez lá, caminhava, agora sim calmamente, indo-me sentar mesmo à beirinha, onde não parava ninguém. Para mim, esse momento era como um ritual, sempre igual, embora todos os dias fossem diferentes entre si. Sentava-me, colocando os braços ao longo do corpo e as mãos sob a madeira húmida. Fechava os olhos e deixava-me ficar.


Era como sentir a vida a entrar em mim.


Primeiro, consoante o vento, o som manso ou bravo do quebrar das ondas. No início, era sempre um som confuso, sem sentido. Porém, lentamente, a minha mente captava o tempo das ondas, e assim o som se transformava em música, embalando o meu corpo ao seu ritmo. Depois, vinha o cheiro a mar. Fresco, salgado, complexo. É como se tudo o que a água do mar tocasse, a onda triturasse e, no final, resultasse num perfume único, o todo de todas as coisas. Engraçada essa coisa de não se poder descrever o cheiro do mar. Água de rio ou de ribeira cheira a algo sem gosto, a folhas trituradas. Parece que conforme as plantas ao redor, assim cheira a ribeira.

Mar, não. Mar não cheira a nada de concreto. É sal, é peixe, é pedra, é areia, é bicho, é isso tudo e nada disso. Assim, chegava-me o cheiro do mar, que me fazia coçar as narinas de tal forma que quando inspirava parecia que os meus pulmões se limpavam de todas as impurezas. Para mim, era como voltar a nascer, com pulmões novos em folha. Quando expirava, era como se todo o peso saísse de mim. Uma leveza indescritível. Era uma sensação contraditória. Era como se eu não tivesse memórias, que tudo começava e terminava ali. Contudo, da mesma forma, era como se tudo se concentrasse ali naquele momento de tal forma que o meu passado e o meu futuro se encaixassem e existissem fora do tempo. Naqueles segundos, entre um sopro e outro, entendia a vida, ainda que fugazmente. Deixava-me estar.


Quando os meus pulmões se habituavam ao mar, abria os olhos. A sensação que me inundava era o oposto de tudo o que sentira antes. Era uma explosão aquele abrir de olhos. Aquele azulão à minha frente, qual manto que se estende infinitamente pelo horizonte; o céu aberto a mostrar o seu estado de espírito e o sol, imperioso, mas ainda assim humilde porque sabe que depende do céu para mostrar a sua grandeza.

Abrir os olhos, era como voltar à realidade. Era relembrar que o tempo não pára e a inconstância de todas as coisas. Era uma parte insossa de ir ver o mar. Ainda assim, era ali, naquele momento frugal que eu realmente acordava para o meu dia.

Após abrir os meus olhos, sabia que não havia volta a dar, que teria de viver. Assim, punha-me de pé, virava-me de costas para o mar e impulsionava o corpo deixando-me cair de costas. A antecipação do contacto com a água, a incerteza do momento exato em que aconteceria, enchia o meu coração de medo: era o mar ou o vazio que me aguardava? Uma vez que tocasse a água e mergulhasse naquela imensidão, sentia o abraço cheio do oceano, tal como o abraço de um pai ou o aconchego de uma mãe que depois violentamente me impulsionava para cima, para alcançar a infinitude do céu, das estrelas e comungar com todos os seres que alguma vez que viveram ou viverão nesses multiversos conhecidos e desconhecidos.

Quando voltava à superfície, sentia o sal a encher-me a boca e lembrava-me porque é que ia ver o mar todos os dias.

Ia ver o mar para sentir, todos os dias, aquilo que só devemos sentir uma vez na vida: nascer e morrer.

Ali, nascia e morria todos os dias, desafiando a natureza, impondo quase que arrogantemente a minha humanidade perante a fatalidade que é a vida.

Ali, podia morrer, mas todos os dias escolhia viver para espreitar o meu futuro mais um bocadinho, até ao dia que essa escolha deixasse de ser minha.





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