Porque não caboverdiano?
- Judith
- 14 de nov. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de fev. de 2021
Cabo Verde completou, em julho passado, 45 anos da proclamação da sua independência. Enquanto nos aproximamos do meio século enquanto Estado independente, creio já ser hora de refletirmos enquanto Estado, mas também enquanto povo, sobre vários aspetos desta caminhada sob pena de nunca nos resgatarmos e repensar quem somos, de onde viemos e para onde vamos. E essa reflexão deverá ser alargada, profunda, desconfortável e, prevejo que também dolorosa. Das várias conversas que poderia aqui começar, vou pegar pela língua se me permitem.
Porque é que o crioulo caboverdiano - doravante referido simplesmente como caboverdiano - não é ensinado nas escolas? Porque é que o caboverdiano não é uma língua de pleno direito perante o Estado Caboverdiano, como é o português?

Em qualquer Estado moderno língua é poder. Se educação é poder, automaticamente a língua também o é. Quem domina a língua, domina a educação e abre assim um dos corredores de acesso ao poder. Há quem aceda ao poder sem dominar a língua do Estado mas, convenhamos, essas pessoas são raras exceções, ou então possuem outros corredores de acesso.
Para uma parte significativa dos caboverdianos e caboverdianas, o acesso ao Estado é limitado ou, se não é limitado, esse acesso não é determinado por eles ou por elas, mas pela benevolência de quem abre ou fecha o portão como lhe der jeito. E sempre que não der jeito, é ao desconhecimento das leis, das normas ou dos direitos e ao domínio da língua do poder que se recorre para barrar a entrada. Para exercer uma cidadania plena não chega só eu entender o português ou falar "umas coisinhas". É necessário ser proficiente. É necessário autonomia linguística.
Hão-de me dar muitos argumentos para refutar as afirmações acima. Grande parte deles infundados, baseados em "crenciologias" neo-colonialistas disfarçadas de pragmatismo. Estes andarão, mais ou menos, por afirmações do tipo "o crioulo caboverdiano não tem regras", " o crioulo de Cabo Verde é uma língua limitadora", "como iremos falar de física ou matemática em crioulo?", "precisamos é investir em línguas globalizadas", e assim por diante. Aqueles menos permeáveis a esses argumentos das "línguas menores", recorrem a questões ou afirmações mais pragmáticas como " qual variedade iríamos oficializar?", " como vamos definir um padrão?" ou então, "a oficialização irá comprometer a variedade linguística do nosso país". Sem deixar de reconhecer legitimidade nestes questionamentos, não os vejo como barreiras intransponíveis. Tudo no final se resume a atitude/perceção sociolinguística e uma boa dose de vontade política. Vou deixar para reflexão futura o contra-senso do ensino de português como língua materna.
Quero com isto dizer que podemos discordar no como implementar quaisquer políticas públicas que resultem da oficialização do caboverdiano. Aquilo que tenho dificuldade em aceitar, em pleno século XXI, é que ainda tenhamos de discutir a legitimidade do caboverdiano ser uma língua e de ela poder ser aprendida e ensinada no sistema formal de ensino e integrada no sistema judicial, público e político de forma aberta e não por portas travessas.
Em termos práticos, a oficialização, padronização e inclusão de uma língua num sistema de ensino é um processo e não um fim em si mesmo. Em termos de visão, para um Estado como o de Cabo Verde, ela é parte fundamental do exercício da cidadania, da solidificação dos processos democráticos e é propulsora de desenvolvimento. A mais-valia humana, política, sociológica da apropriação plena da língua caboverdiana pelo Estado e povo de Cabo Verde, ultrapassa, na minha opinião, em larga medida os inconvenientes ou obstáculos que tal empreitada poderá implicar.
Posto isto, só posso concluir que não se aprende caboverdiano nas escolas e não se integra a língua caboverdiana enquanto língua plena do Estado porque, no fundo, não interessa aos poderes instituídos. Num tempo em que falamos em não deixar ninguém para trás - o lema da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável - convém não nos esquecermos que às vezes isso também passa por pequenos passos que permitem às pessoas valerem-se mais por si próprias ou terem a sua vida de todos os dias facilitada. Precisamos entender que ninguém vai para a frente enquanto uns, os de sempre, continuarem a ficar para trás.
Ma mi nha boka ka sta la.
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